Por Marcelo Pomar
Mais uma vez o tema é o transporte coletivo.
Quando em 2004 e 2005 Florianópolis viveu um dos grandes capÃtulos da sua história de lutas, com os eventos que ficaram conhecidos com as Revoltas da Catraca, havia na cidade um conjunto de condições objetivas muito fortes para que as pessoas protestassem de maneira intensa contra o sistema de transporte, a ponto de produzir uma grande resistência popular que barrasse o aumento das tarifas de ônibus, por dois anos seguidos. Essas condições objetivas não se resumiam aos seguidos aumentos tarifários que, a despeito de um perÃodo de inflação controlada e moeda estável no paÃs (1996 – 2004), chegavam à casa dos 230% de reajuste, mas também a implantação do Sistema Integrado de Transporte (SIT, 2003), que mudou muito, e para pior, a forma das pessoas se deslocarem pela cidade, aumentando bastante o tempo de deslocamento, e o fazendo sem seguir uma lógica coerente de aproveitamento do tempo, nem tampouco considerando a experiência concreta das pessoas e a participação delas no processo de elaboração desse novo sistema.
Para além desse conjunto de condições que chamei de “objetivasâ€, havia igualmente um conjunto de condições subjetivas, que foram determinantes para a criação de um caldo de cultura de mobilização, com um protagonismo estudantil (ou juvenil), e que estavam ligados à Campanha pelo Passe Livre, organizada na cidade desde pelo menos o ano de 2000, e que já estava enraizada em escolas, grêmios, nas universidades, enfim, nos meios de atuação do movimento estudantil. Uma campanha ampla, que embora fosse dirigida por um grupo polÃtico especÃfico, tinha uma caracterÃstica aberta, que permitiu que a reivindicação fosse tomada desde as tradicionais organizações de juventude partidárias, mas também por jovens independentes, organizados ou não. Esse conjunto de pessoas, que tomaram as ruas para escrever a história das Revoltas da Catraca, é o que depois eu chamei de “Geração das Revoltasâ€.
O estopim, que ocorreu em 28 de junho de 2004, foi na realidade um empurrão que a prefeitura deu, à época Angela Amin (PP), ao anunciar um novo aumento tarifário de 16%, e que permitiu num dado momento histórico especÃfico, a conjunção dessas duas vertentes, a “objetiva†e a “subjetivaâ€. E a Revolta de 2005 não foi um evento novo, original. Embora tenha ocorrido de forma diferente da de 2004, com métodos diferentes, uma forma diferente, ela era uma continuação do que ocorreu em 2004, estava inscrita no mesmo contexto histórico, e ocorreu na esteira dessa conjuntura.
Esses eventos foram extremamente vitoriosos, e não porque barraram o aumento das tarifas, simplesmente, mas principalmente porque incluÃram na pauta do transporte coletivo um ator que até então estava esquecido, pouco participava desse debate, que era o usuário do transporte, ainda que representado majoritariamente pelo segmento estudantil. Além das conquistas econômicas, portanto, com a manutenção dos preços praticados, algumas conquistas estruturais foram alcançadas, como a tarifa única do transporte, ao invés da multi-tarifação praticada até então, as faixas exclusivas de ônibus, ainda que tÃmidas e mal-organizadas, o fechamento da Paulo Fontes, avenida que dava acesso aos terminais, e a aprovação da lei do passe-livre estudantil (outubro de 2004), ainda que não tenha vigorado. Tudo isso serviu para afrouxar os ânimos, fazer com que os anos subseqüentes fossem de relativa normalidade, mesmo com as tentativas, por parte da “geração das revoltasâ€, de editar os dias gloriosos das jornadas de luta de 2004/05.
Para explicar melhor essa tese eu costumo utilizar a figura de uma mola, que tem na base os usuários do transporte, suscetÃveis à exploração permanente, em virtude da própria lógica de concessão privada para exploração de serviço público, utilizada na estrutura do transporte; e no topo dessa mola, empresários do setor e poder público, geralmente articulados na manutenção desse sistema. Quando a exploração chega a uma situação limite, há uma reação da população, que empurra com força a mola pra cima. Isso afrouxa o nÃvel de opressão. Tão logo as coisas se estabilizem, a mola passa a ser comprimida novamente. Considero que passados esses cinco anos, estamos novamente próximos do limite, e organizada ou não, mais ou menos intensa, haverá uma reação a essa exploração.
Talvez a grande derrota de 2004/05 tenha sido a fragilidade do movimento em ir além das reivindicações de cunho econômico, como a questão da tarifa. Não conseguimos inscrever no nÃvel do estado, no nÃvel institucional, das leis, mudanças na estrutura do transporte que nos permitissem apontar para uma perspectiva diferente da mola. A discussão que vigorava no movimento estudantil à época era muito mais frágil, e fomos incapazes de avançar no debate. Coisa que foi feita, pelo menos por alguns grupos polÃticos organizados nos anos posteriores à s Revoltas. Foi o caso do Movimento Passe Livre, com o debate da mobilidade urbana e do direito à cidade, da Tarifa Zero para toda a população (ao invés do passe-livre estudantil), a crÃtica ao regime de concessões privadas e o resgate dos conceitos e da experiência de municipalização, realizada no inÃcio dos anos 90, em São Paulo.
No entanto, o aprofundamento desses conceitos não se reverte em mobilização, até porque as pessoas se mobilizam por questões práticas, palpáveis, que dialoguem mais diretamente com seu cotidiano, com questões materiais como o preço das tarifas. Até por isso nunca estive tão convicto da possibilidade de um novo levante desde 2005. Novamente a mola desceu, e se não chegou ao limite, está perto dele. Com a diferença fundamental de que podemos e devemos avançar no debate, na perspectiva de inscrevê-lo em lei. Considero essa a principal responsabilidade das lideranças polÃticas envolvidas na condução do processo atual.
Não é uma tarefa fácil, a começar pelas próprias divergências internas no seio do movimento. Sem desejar entrar muito no mérito delas, uma dessas divergências é a polêmica (que eu considero uma “falsa polêmicaâ€) entre os termos “estatização x municipalizaçãoâ€. Segmentos mais tradicionais da esquerda organizada tendem a fechar com o termo estatização para o transporte coletivo, como saÃda para um projeto alternativo ao atual de transporte coletivo. Bueno, tomado isoladamente, o termo pode ser correto. Na prática não há estatização do sistema em nÃvel municipal. Seria estranho, pra dizer o mÃnimo, um processo polÃtico super-radical em Florianópolis, que expropriasse a frota de ônibus da nossa cidade, mas que fosse refém da Marcopolo, Caio, Busscar, da indústria de peças de reposição etc., toda vez que precisasse de novos ônibus ou insumos. Ou que, por razão da conjuntura especÃfica da cidade, permitisse que os ônibus que circulem em Florianópolis fossem “estataisâ€, mas os que vão a São José fossem privados. De mais a mais, a caracterÃstica estatal não é garantia de popular, ou mesmo pública. Nos Estados Unidos, por exemplo, não só o transporte público é estatal, como também a NASA, e outras instituições que nada tem a ver com o interesse público da maioria dos norte-americanos.
Mas é preciso dizer por que considero essa uma falsa polêmica. Basicamente porque não é o arrazoado de idéias acima citadas, nem os extensos textos estatizantes da Juventude Revolução, ou de qualquer outra organização tradicional, que determinarão se teremos um processo de estatização (parcial, como antes explicado) ou se inscreveremos outro sistema qualquer para a execução do transporte coletivo e do direito à mobilidade ampla e democrática na cidade. É basicamente a correlação de forças na disputa polÃtica. De forma que mesmo que no âmbito do movimento optemos pela formulação de uma “estatização†do sistema de transporte, nada disso fará sentido se não conseguirmos extrapolar os muros do próprio movimento.
Para concluir essa idéia, não creio que os defensores da municipalização sejam contra a estatização, apenas defendem a municipalização como uma precisão dos termos, baseado em experiências concretas antes vivenciadas nas lutas por transporte, principalmente se considerarmos o fato de que a estatização plena só é possÃvel dentro de um processo polÃtico muito mais amplo. Sobre esse debate vale a pena ler os textos do André Moura Ferro, e os textos disponibilizados no site www.tarifazero.org
Finalmente, não posso averiguar com segurança qual é o nÃvel das condições subjetivas que temos hoje no movimento estudantil de Florianópolis. Em que medida uma nova geração rebelde está se formando nas escolas, e se preparando para o bom combate. Não tenho mais qualquer vÃnculo com o movimento estudantil, mas tenho a impressão de que está surgindo algo novo, e a certeza de que novamente surgirão daà os protagonistas de um possÃvel levante popular. Oxalá possamos respirar novamente os ares da Revolta! Oxalá possamos fazer mais do que nas anteriores. Grandes saltos vêm de processos como este. Infelizmente para aqueles que terão que lidar mais diretamente com a repressão, devo dividir a dura convicção de que somente a amplitude radical do movimento faz com que as autoridades polÃticas retrocedam em nosso favor. Mas tudo vale a pena quando a História se apresenta à nossa frente. A legitimidade do movimento é evidente, está nas ruas, nos terminais, nos bairros, exatamente como em 2004.
Marcelo Nascimento Pomar, 28 anos, historiador, fundador do Movimento Passe Livre (MPL).
Fonte: http://tarifazero.org
2 respostas a Condições objetivas bem maduras para um novo levante popular em Florianópolis, em 2010: